Há uns tempos a trás publiquei, neste blog, um pequeno artigo, sobre o Padre João Lima Torres, de Barcelos, e do seu interesse pela relojoaria, na qualidade de projectista e construtor de Relógios para as torres das igrejas.
Quis o destino que o autor do ANUÁRIO DE RELÓGIOS E CANETAS, o jornalista F. Correia de Oliveira lê-se esse artigo, o que deu origem à sugestão para que eu escrevesse, sobre o assunto, um artigo para o Anuário de 2011.
Assim, em baixo, disponibilizo, para os leitores deste blog, uma cópia do referido artigo.
Todavia, para os " amantes " da relojoaria, direi, que não se contentem com o artigo e comprem o ANUÁRIO DE RELÓGIOS E CANETAS -2011 ( nas bancas desde Dezembro ), porque vale a pena. Trata-se de um documento, sobre relojoaria, de qualidade internacional ! Parabéns ao Fernando Correia de Oliveira.
HOMENAGEM AO PADRE " Relojoeiro " JOÃO LIMA TORRES
Desde o início do século XIV até meados do século passado os chamados Relógios de Torre, tiveram uma importância fundamental na informação horária ás populações, com particular ênfase nas pequenas e médias comunidades, onde além da indicação das horas e meias horas havia também o tocar de uma música tendo, em Portugal, ficado muito popular as conhecidas melodias do Westminster de Londres e a Avé Maria de Fátima, divulgadas pelos relógios de carrilhão Reguladora, que foram fabricados durante mais de 100 anos, em V. N. de Famalicão .
Ao longo dos últimos seis séculos e em particular depois da invenção do pêndulo ( descoberta do isocronismo das oscilações - Galileo 1583), dois locais público, adquiriram a primazia da colocação deste relógios de torre; As Igrejas e os Edifícios Municipais. Não é por isso de estranhar que alguns Padres, enquanto homens de cultura e ciência, tenham encontrado na relojoaria um hobby para os seus tempos livres.
Em 1970, enquanto director da Fabrica de Nacional de Relógios – Reguladora, em V.N. Famalicão, fui contactado por uma irmã da “ Casa Menino Deus “ das Franciscanas Missionárias de Maria, em Barcelos, sobre o interesse , para a Fábrica, na aquisição do espólio de relojoaria do falecido padre João de Lima Torres.
Observado o material exposto, conclui que tal não tinha grande interesse para a fábrica , mas que o mesmo poderia ter alguma utilidade para um relojoeiro reparador. Aconselhei, por isso a irmã a contactar os relojoeiros de Barcelos e eventualmente de Braga sobre o assunto.
A irmã agradeceu a minha deslocação e para me “ compensar ” fez questão de me oferecer um envelope que continha um livro, sobre relógios eléctricos e alguma documentação sobre a actividade relojoeira do Padre Lima Torres, que eu desconhecia. Antes de mais fiquei desde logo surpreendido pelo facto do Pe. Lima Torres dispor do livro sobre relojoaria eléctrica, que me estava a ser oferecido, pois em Portugal só conhecia, então, um exemplar daquele livro, que eu havia trazido da Suissa algum tempo antes.
“ Religiosamente “ guardei aqueles documentos e são alguns extractos deles que hoje, por solicitação do Fernando C. de Oliveira, publicamos por se considerar relevante a sua divulgação, sobretudo para aqueles que como nós se interessam pela relojoaria, independentemente de até poderem exercer qualquer outra actividade.
Por força daquela solicitação e na busca de uma fotografia do Pe. João Lima Torres, para valorizar este artigo, acabei por fazer alguma investigação sobre este ilustre membro da comunidade católica e assim cheguei a um seu sobrinho neto , o Dr. Lima Torres , que por coincidência é afilhado de baptismo do padre João. Ao Dr. Lima Torres os meus agradecimentos não só o esforço para se conseguir a referida foto mas também a informação que me forneceu sobre a importância do Pe. João Lima Torres como musicólogo. Efectivamente o Pe. João Lima Torres ocupa um lugar de destaque na bibliografia de música religiosa do século XX dedicada a Fátima , de onde se destacam ; “ Carrilhões de Fátima “ – 1945 e várias Cânticos produzidos nos anos 50 e 60 daquele século.
O Pe. João Lima Torres que foi capelão da “ Casa do Menino Deus “ das Franciscanas Missionárias de Maria - Barcelos, durante várias décadas, faleceu em Maio de 1968.
O padre João Lima Torres, não se limitava a ser um apreciador de relógios. Era um estudioso da sua engenharia, desenvolvendo os seu próprios projectos; desenhava e calculava peças e sistemas para relógios de torre, sob a marca Lusofaber, que criou, contratando depois a produção das peças em oficinas de Barcelos ( Serralharia Barcelence ) e do Porto ( J. Ramos & Irmão ) e quando necessário, com o recurso a acessórios de relógios do Jura Francês, onde este relógios se fabricavam desde meados do século XVIII e que na altura tinham um importador em Albergaria-a-Velha ( Miguel Marques Henriques ).
Em toda a correspondência trocada pelo Pe. Lima torres, quer com clientes ( colegas de outras paróquias ), quer com fornecedores é bem patente a motivação do Pe. Lima Torres em produzir os relógios em Portugal como forma de substituir as importações que então se faziam, dos mesmo tipo relógios
Pelas informações que obtive, enquanto director técnico da Reguladora, posteriormente pela leitura da documentação que me foi confiada e agora com a descoberta da importância da sua produção musical dedicada a Fátima, nomeadamente a sua obra “ Carrilhões de Fátima “ de 1945, tudo indica, embora não o possa afirmar categoricamente, que tenha sido o Padre João Lima Torres o autor da melodia Avé Maria de Fátima introduzida nos relógios da Reguladora no princípio da década de 40 do século passado. Ver em baixo a referência que faz ao seu relacionamento com a Reguladora, em 1944, na correspondência que troca com a empresa J. Ramos & Irmão, em Março de 1950.
A seguir publicam-se alguns extractos da correspondência trocada entre o Pe. Lima Torre, a empresa fornecedora J. Ramos & Irmão e o cliente, padre da igreja São Romão – Ucha (Barcelos), sobre o projecto, produção e instalação de um relógio de torre, na igreja de São Romão da Ucha, bem como os cálculos da “ Rodagem do Movimento” e dos “Metros precisos para descida dos pesos “, desenhos da “ Serra de Contagem “ e do “ Mostrador de máquina “ e duas fotos do mecanismo completo.
São documentos que além de mostrarem a capacidade criativa do Pe. Lima Torres , na área da tecnologia e da engenharia de relojoaria, evidenciam também uma atitude contributiva para o desenvolvimento industrial que na época se começava a impor-se em Portugal.
Carta dirigida pelo Pe. Lima Torres ao Sr. José Leite, sócio gerente da secção de Máquinas, da firma J. Ramos & Irmão – fornecedor - em 12 de Março de 1950:
“ Na minha Agenda ( 10 do corrente ) apontara o seguinte: Falar com algum dos donos da Fábrica particularmente, para ajustar contas equitativas, pondo em linha de conta os meus planos e direcção técnica na confecção do novo relógio de torre J. Lusofáber.”
…..
“ Repito o que já disse mais de uma vez: A Casa é construtora competente de máquinas industriais, não de relógios ( que são máquina especiais, não industriais ). Ora, sendo assim, o meu caso como cliente é muito diverso; e assim diverso tem de ser o computo a fazer no artigo ( tempo gasto e oficiais especializados ). Como de relógios não percebem, evidentemente tinha eu próprio de intervir com a minha engenharia e direcção técnica. Revelando lealmente os meus planos, dei à Casa a possibilidade de uma nova modalidade de fabrico especial. Quando em 1944 apresentei à Boa reguladora ( de Famalicão ) o meu novo carrilhão de sala com todos os seus cálculos numéricos, os donos da fábrica apreciaram os planos do novo relógio e a minha franqueza em lhos confiar desinteressadamente , fabricando-me alguns acessórios e dando-me alguns outros do seu fabrico; e tiveram o gesto simpático de não me aceitarem retribuição alguma. Fizeram-me todos os serviços que eu pretendia, nas mesmas condições. Entenderam afinal, que eu não era fabricante; e, por isso, não era um cliente normal, mas especial. “
….
“ quem me há-de resarcir do trabalho intelectual e corporal, que o novo relógio me tem acarretado …e isso por querer ser prestável a um colega amigo que deseja celebrar frutuosamente as suas bodas d’oiro sacerdotais ?...
Acresce que a freguesia de S. Romão da Ucha ( como em geral todas d’esta redondeza !) não tem industriais nem capitais, como essa de Lordelo de Ouro e as mais d’essa zona…Portanto tenho empenho em não assustar em agravar o interessado! “
Carta dirigida pelo Pe. Lima Torres ao Pe. António Gomes da Costa Abade da Ucha – cliente - em 21 de Maio de 1950
“ …Sobre a máquina do relógio devo dizer que é de primeira qualidade ( em mateiral, perfeição e rebustez ), medindo-se perfeitamente com as suas congéneres francesas ( que custam cá de 29 a 29 mil escudos, sem mostrador e pesos, nem horas repetidas). Tenho aqui um catálogo , de Albergaria-a-Velha “ ( importador Miguel Marques Henriques ). …as minhas custam 15 mil escudo ! “
Imagens
a) Cálculo da “ Rodagem do Movimento ”
b) Cálculo dos “ Metros precisos para a descida dos pesos “
c) Desenho da “ Serra de Contagem “
d) Desenho do “ Mostrador da máquina “
e) Vista lateral do mecanismo
f) Vista frontal do mecanismo
Notas Finais:
1- Foram vários os relógios de Torre Lusofaber produzidos segundo projecto do Pe. Lima Torres e instalados em paróquias do norte de Portugal, embora na documentação em causa haja apenas referência aos relógios das igrejas da Ucha e de Vila Seca. Para este último, que tudo indica seja anterior ao relógio da Ucha, o Pe. Lima torres teria encomendado o fabrico das peças, de que necessitava, na Serralharia Barcelense, em Barcelos.
2-Em toda a correspondência trocada pelo Pe. Lima torres, quer com os Clientes ( colegas de outras paróquias ) quer com fornecedores é bem patente a motivação do Pe. Lima Torres em produzir os relógios em Portugal como forma de substituir as importações que então se faziam, deste mesmo tipo relógios.
3-Numa época em que tanto precisamos de desenvolver a nossa indústria transformadora, parece de elementar justiça salientar a dedicação, o empenho e a criatividade do padre João Lima Torres, à causa da relojoaria do seu tempo e à sua atitude de produção nacional. Também por isso aqui deixamos esta pequena homenagem a um homem que sendo de cultura espiritual, quis partilhar com a comunidade a sua criatividade e engenho de produtos bem terrenos .